Em episódios como o do ex-morador de rua Givaldo Alves e da recorrente fabricação de inúmeras celebridades de realities shows percebemos a constante valorização de personagens e conteúdos vazios em detrimento de produção intelectual, profissional e assuntos educativos. Mas a comunicação social de massa faz isto há muito tempo
Marcílio Souza*
A valorização de conteúdos rasos, promoção de valores baseados em mercados e a fabricação de personagens ícones de momentos históricos não são práticas novas na comunicação social de massa no Brasil. Apesar de alterações nos formatos, nas linguagens e na configuração dos meios comunicativos utilizados, a comunicação de massa, mesmo com a presença da internet, ainda define padrões, modelos e tendências.
Na década de 1970, o estudioso Muniz Sodré, ligado a um importante movimento intelectual na área de comunicação da Universidade Metodista de São Paulo, publicou o livro “Comunicação do Grotesco”, três décadas depois atualizado e ampliado na obra “O Império do Grotesco”, apresentando reflexões sobre as variadas manifestações de formas aberrantes e escatológicas, o grotesco, na sociedade brasileira, especialmente nos meios de comunicação eletrônicos e nas artes.
Com o intuito de expansão e de popularização dos seus conteúdos, os meios de comunicação brasileiros, especialmente a televisão aberta, usou e abusou na oferta de programações repletas do “grotesco”, de informações e personagens que não se relacionavam ou se aprofundavam em temas de real relevância para a sociedade, especialmente do ponto de vista instrucional e educativo.
Voltando um pouco nas produções intelectuais mundo afora, em meados do século XX, estudiosos como Theodor Adorno, Max Horkheimer e Walter Benjamin, da escola de Frankfurt, na Alemanha, promoveram conceitos e abordagens teóricas sobre a Indústria Cultural, que consiste em produções artísticas e culturais padronizadas e massificadas, visando tanto a facilitação no entendimento de conteúdos quanto a própria alienação, bem como a manipulação e a dominação das massas pelas elites.
No Brasil, de ontem e de hoje, a indústria cultural estabeleceu-se e interferiu definitivamente na nossa produção midiática e artística. Foram criados diversos padrões e mecanismos de controle sobre o que é produzido e o que ganha visibilidade na sociedade. Normalmente, o que mais apareceu e ganhou espaço foram produtos e personagens insignificantes em termos da formação intelectual e educativa da população.
Nas décadas de 1980 a 2000, era comum a propagação de conteúdos pejorativos, preconceituosos e com os mais diversos esterótipos em relação a sexo, gênero, classe social, profissão, raça e cor de pele, tanto em letras de músicas, como em programas de humor, de auditório e em enredos de telenovelas. Tudo em grandes veículos de comunicação e com patrocinadores e apoio empresariais.
Apesar de nas últimas décadas ter ocorrido uma diminuição dos conteúdos preconceituosos e desrespeitadores, até por alterações nas leis, pressões sociais e as devidas criminalizações, presenciamos em larga escala a produção e veiculação do grotesco por meio da sensualização, erotização e promoção de banalidades nos variados produtos de entretenimento, nas telenovelas, em programas televisivos e radiofônicos, em plataformas da internet e nas ‘letras’ de músicas. Conteúdos carentes de boas informações e de conhecimentos refinados ainda imperam nos meios de comunicação populares, inclusive na internet e nas redes sociais.
Neste sentido, pessoas como o Givaldo Alves, sem entrar no mérito dos fatos ocorridos, bem como tantas outras figuras irrelevantes do ponto de vista de produção intelectual e artística, ganham enorme visibilidade social, fama e aspectos de celebridade. Tanto o ex-morador de rua, que já se cogita participar do programa televisivo A Fazenda, como o casal envolvido nos fatos, da noite para o dia, tornaram-se referências sociais, com muitos seguidores nas redes sociais, e passam a lucrar com a exposição e a fama.
Ainda com o advento e a expansão da Internet e das redes sociais, que alterou definitivamente os rumos e os limites da comunicação social no Brasil, percebe-se que os grandes meios de comunicação continuam pautando muitos dos assuntos que circularam na sociedade. Futilidades e celebridades fabricadas são introduzidas o tempo todo nos fluxos comunicativos. A internet e as redes sociais são catalisadoras e impulsionadoras destas pautas banais.
Apesar disto, não podemos deixar de dizer que a internet e as redes sociais também impulsionam e pautam os tradicionais meios de comunicação. Muitos assuntos e fatos hoje explodem na internet e nas redes sociais e acabam sendo abordados pelos grandes veículos. Nota-se também, que com a internet e as redes sociais ocorreu uma imensa diversificação de nichos comunicativos, hoje existem os mais diversos grupos e comunidades para uma imensidão de temas e abordagens. São ‘mundos’ paralelos, realidades independentes, com regras próprias, dentro das sociedades, de uma mesma nação ou de várias.
Neste aspecto, com a expansão da internet e das redes sociais, verifica-se tanto uma infinita possibilidade de multiplicação dos emissores como variados acréscimos nas inversões entre emissão e recepção, quando um receptor passa rapidamente para a posição de emissor, além da elevação ilimitada dos retornos, dos feedbacks aos emissores, quando estes obtém as reações do receptor à sua mensagem. Por conseguinte, os meios de comunicação e outros setores da sociedade tiveram que se adaptar a essa nova realidade.
Mesmo que muitos, especialmente os mais tradicionalistas e os que defendem os interesses dos conglomerados da grande mídia, ainda afirmam que a internet e as redes sociais deram espaços e palanques para “imbecis” e a públicos incapazes de seguir os padrões dos meios institucionalizados, verificamos, na realidade, uma maior liberdade do povo em geral em comunicar, sendo receptor e também emissor, sem os filtros, as manipulações e as imposições da grande mídia.
Hoje, e no futuro, em sociedades democráticas e sem controles estatais ou de grupos hegemônicos, com a popularização e o fácil acesso à internet e às redes sociais, que invadiram os smartphones de quase a totalidade da população, a comunicação social passou a ser totalmente difusa, sem polos ou filtros de veículos comunicativos tradicionais, apesar das ações de plataformas de algumas redes sociais no intuito de controlar o que é publicado e o volume de publicações dos usuários.
Assim, o uso da internet e das redes sociais pela população é um caminho sem volta. O povo gosta de se comunicar, de interagir e os novos meios facilitam na comunicação e na agilidade da troca de mensagens. Comunicam por meio de conteúdos diversos, por vezes inventivos e sem apelo com fatos e a realidade, mas também disseminam conhecimento e notícias. Para barrar isto, só por meio do controle da liberdade de expressão das pessoas, da interferência e mesmo da censura de poderes instituídos na sociedade. O povo e a comunicação livres dão mais trabalhos para os poderosos e os grupos que mandam e desmandam na sociedade.
Entretanto, o surgimento de novas redes sociais e mesmo a mudança de donos das já existentes podem minimizar os anseios controladores dos que comandam as atuais plataformas, que por vezes sofrem pressões e interferências de outros poderes sociais estabelecidos, quer econômicos, políticos ou de lideranças populares e de classes. O certo é que existe uma corrida desenfreada pela manutenção de poderes e o próprio controle do povo, que se apresenta mais livre de amarras e das garras dos diversos poderes tradicionais, por meio da efetividade da comunicação mais difusa.
Percebe-se, no andar da carruagem, que na atualidade vivenciamos um misto de grotesco com o extremo da indústria cultural. Os produtos e personagens desta mistura ganham maior visibilidade com a rapidez e difusão da comunicação na internet e nas redes sociais.
Em suma, não existe ingenuidade no besteirol, na indústria cultural e no grotesco. Existem sim produtores e transmissores de conteúdos e ‘moda’, sedentos por dinheiro e imposição de costumes.
Nesta lógica, é uma grande falácia afirmar que a internet e as redes sociais são as grandes responsáveis pela comunicação do grotesco e pela valorização dos produtos da indústria cultural, bem como promotoras de imbecilidade. Grandes meios de comunicação, a indústria fonográfica e de entretenimento, há muito tempo valoriza o grotesco e produtos com baixo valor informativo e educativo. A difamação da internet e das redes sociais podem ser justificativas perversas para o controle e a própria censura, velada, disfarçada ou declarada.
Além disso, tanto na internet como nas redes sócias circulam uma quantidade enorme de conteúdos bons, com elevado teor de informação e educação. A escolha do que acessar ainda é um problema, sobretudo social.
Com boa educação e treinamentos específicos, as pessoas alterarão tanto a produção como o acesso aos conteúdos disponíveis na internet, nas redes sociais e em outras esferas sociais. Uma população mais educada, em contato nas escolas e em outras instituições de ensino com informações e conhecimento amplos e aprofundados sobre os processos comunicativos, adquirirão novas posturas perante o aparato comunicativo disponível na sociedade, com prováveis ganhos no momento de selecionar, e produzir, os conteúdos.
Para a população se distanciar do “império do grotesco” e de produtos e personagens da indústria cultural, torna-se necessário uma alteração nos processos educativos. As pessoas precisam ser instruídas e treinadas para o bom uso da comunicação, bem como alertadas para o mal uso.
Quando teremos mais investimentos neste sentido? A história vai nos mostrar. Infelizmente, ainda não se percebe um movimento contundente na educação do povo para os desafios da comunicação atual, apesar de críticas e culpas infundadas. Mas precisamos, com urgência, de um processo educativo ou reeducativo.
Marcílio Souza é sociólogo e jornalista, mestre e doutor em comunicação.