Artigo de Paulo Roque publicado no Jornal O Estado de São Paulo (Estadão) em 04/02/2022 pelo Repórter Fausto Macedo, sobre a ADPF 905 que vai a julgamento no plenário virtual STF, próximo dia 9.
O mundo para além de uma brutal pandemia, enfrenta concomitante um crescente movimento antivacina, sustentado no alegado exercício constitucional do direito à liberdade ou autodeterminação do cidadão. Neste sentido, o trabalhador, que se recusa a vacinar contra o COVID 19, pode ser demitido por justa causa? A portaria 620/2021 do Ministério do Trabalho de forma expressa proibiu a demissão por justa causa; entretanto, liminar concedida pelo Ministro Luís Roberto Barroso na ADPF 905 proposta pelo partido Novo suspendeu os efeitos dessa portaria. No próximo dia 9 de fevereiro, o plenário virtual julgará o mérito dessa ação der Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A Suprema Corte dos Estados Unidos julgou recentemente questão semelhante. Muito embora tenha decidido por considerar inconstitucional a ingerência do Estado nas atividades privadas com a obrigatoriedade da vacina; decidiu que não haveria nenhuma inconstitucionalidade ou violação à liberdade dos cidadãos se as próprias empresas decidissem pela imposição da obrigatoriedade da vacina aos seus funcionários.
A ADPF 905 aponta vários vícios na referida portaria; (i) A portaria usurpou competência exclusiva do Congresso Nacional, conforme artigo. 22 combinado com o artigo 48 da Constituição; (ii) o princípio da reserva legal (art. 5o, da CF), ao inovar a ordem jurídica primária ao criar proibição não prevista em lei;(iii) os direitos fundamentais à vida e à saúde (art. 5o, caput, art. 6o e art. 196, da CF/88). A tendência é que o STF, com base em precedentes anteriores sobre a obrigatoriedade da vacinação (ADIs 6.586 e 6.587) decida pela incompatibilidade da portaria com o ordenamento constitucional.
Para além do vicio formal da portaria, há um embate entre dois direitos fundamentais na proibição da demissão por justa causa aos não vacinados. De um lado o direito à liberdade e; do outro o direito à saúde da coletividade. O direito constitucional contemporâneo tem consagrado a máxima de que nenhum existem direito absolutos. Como os direitos existem para serem exercidos em sociedade, ou seja, ainda que individuais a outorga de um direito ao cidadão só faz sentido na relação com o outro ou com a própria coletividade; se a sociedade pudesse existir sem essas relações/interações qual o sentido teria a outorga dos direitos. Da outorga dos direitos nasce a necessidade da imposição de limites ao exercício do próprio direito para que o exercício do direito não asfixie ou prejudique esse mesmo direito do outro na relação em sociedade. Tal configura uma operação natural dos ordenamentos no Estado de Direito exatamente para que a pacificação social seja sempre um objetivo.
Em relação a portaria do Ministério do Trabalho qual direito deve prevalecer na situação apontada; o direito à liberdade; ou o direito à saúde? No choque entre direitos fundamentais, a teoria constitucional aponta para necessidade de um exercício de ponderação sobre qual deles deve ter maior preponderância na situação apontada. Até aqui, o despacho monocrático do Ministro Luís Roberto Barroso aponta para o maior peso do direito à saúde da coletividade. As pesquisas até aqui disponíveis tem demonstrado que sem a vacinação o número de óbitos seria ainda mais catastrófico; ao passo que chega a mais de 90% o número de mortes entre os não vacinados, conforme apontam estudos do instituto Butantã. Não fosse a natureza altamente contagiosa do COVID 19; a recusa da vacinação se justificaria exatamente pelo fato que, neste caso, o exercício da autodeterminação manifestada na recusa em se vacinar não colocaria em risco nem a saúde nem a liberdade dos demais. É uma situação onde o risco de dano é para o próprio cidadão em si; que, pela autodeterminação conforma suas decisões assumindo esse perigo de dano a si mesmo exatamente porque não colocaria em risco a vida e a saúde dos demais.
Dada a natureza altamente contagiosa da Covid-19, a presença de um trabalhador em um ambiente de trabalho, sem vacinação e com possibilidade de estar contaminado com o vírus, importa em risco a proteção à saúde dos demais trabalhadores e, por conseguinte, em restrição à liberdade dos demais. A restrição à liberdade dos demais membros da organização empresarial ocorre, inclusive, por conta do risco de óbito de qualquer deles por serem obrigados a conviver com quem propositadamente se recusa a imunização vacinal.
Essa é a razão pela qual se admite que o Estado, atendidos os requisitos de segurança e eficácia das vacinas ( a ANVISA, inclusive, recusou autorizar vacinas como a russa Sputnik por falta de transparência dos testes das fases 1 , 2 e 3) deve trazer mecanismos para proteção da liberdade da maioria dos indivíduos, isto é, da coletividade, com o objetivo de cumprir o dever de concretizar o direito à saúde de todos, em especial as ações que busquem à redução do risco contaminação e disseminação do vírus.
A regras constitucionais servem, sobretudo, para o exercício da racionalidade coletiva, de modo a permitir a coordenação de ações de proteção da liberdade da maioria de forma eficiente. Até porque, conforme fez questão de esclarecer a própria ANVISA, nenhuma vacina em uso no Brasil é experimental; conforme determina as normas de segurança, todas as vacinas foram submetidas às fases 1, 2 e 3 antes de terem seu uso coletivo autorizado. Este, aliás, é o procedimento de segurança para toda e qualquer vacina adotada pelo Programa Nacional de Imunizações.
Paulo Roque Khouri, advogado, doutor em Direito Privado, professor, diretor financeiro do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Brasilcon), fundador do escritório Roque Khouri Advogados & Associados
Fonte: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/covid-19-vacina-e-demissao-por-justa-causa/