O problema no fígado já pode ocorrer quando um quinto ou mais da dieta é baseada nesse tipo de alimento
Por Adrián Cordellat, El País
O consumo abusivo de fast food, juntamente com outros hábitos não saudáveis, como a falta de exercício físico, está associado ao desenvolvimento de problemas de saúde, como a obesidade ou a diabetes tipo 2.
Num país como o Brasil, onde, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS, 2020), 25,9% da população adulta sofre de obesidade e mais de 60% (o que representa 96 milhões de pessoas) têm excesso de peso; e, na Europa, em que, de acordo com dados de 2021 da International Diabetes Federation, um em cada sete adultos (a segunda taxa mais elevada do continente) são afetados pela diabetes tipo 2, tais associações já foram mais do que alertadas por especialistas em saúde pública, médicos e divulgadores científicos.
Existe pouco conhecimento sobre a relação entre o consumo frequente de fast food e o desenvolvimento da doença hepática gordurosa não alcoólica (também conhecida como esteatose hepática, ou Gordura no Fígado). É uma condição potencialmente fatal causada pelo acúmulo de gordura no fígado e que pode levar, em estágios mais avançados, à cirrose e ao câncer hepático. Em países como os Estados Unidos, já é a principal causa de transplante de fígado.
De acordo com os resultados de um estudo recente publicado na revista científica Clinical Gastroenterology and Hepatology, pessoas com obesidade ou diabetes que consomem 20% ou mais de suas calorias diárias em fast food têm níveis mais altos de gordura no fígado quando comparados com quem consome menos ou nenhuma quantidade de fast food. A população em geral também apresenta aumentos de gordura no fígado ao basear um quinto ou mais de sua dieta nesse tipo de alimento, embora o aumento seja moderado neste caso.
“Fígados saudáveis contêm per se uma pequena quantidade de gordura, que em via de regra representa menos de 5%. Sabemos que mesmo um aumento moderado desses níveis pode levar à doença hepática gordurosa não alcoólica. Ficamos especialmente surpresos com o aumento acentuado da gordura hepática em pessoas com obesidade ou diabetes” explica a hepatologista Ani Kardashian, da University of Southern California.
“Isso provavelmente se deve ao fato de que essas condições de saúde causam uma maior suscetibilidade ao acúmulo de gordura no fígado” acrescenta Kardashian, principal autora do estudo. A hepatologista considera que os achados são “particularmente alarmantes” em um contexto como o atual, em que o consumo de fast food aumentou consideravelmente nos últimos 50 anos, independentemente do nível socioeconômico.
Na Espanha, segundo Rocío Aller, especialista no sistema digestivo do Hospital Clínico de Valladolid, a Gordura no Fígado já é a principal causa de cirrose, superando inclusive o consumo de álcool. “É uma questão de saúde pública de primeiro nível” declara a especialista, embora ressalte que os resultados obtidos nos EUA não são diretamente transferíveis para a Espanha: “Lá é mais comum que as pessoas consumam fast food diariamente, enquanto na Espanha podemos encontrar frequências de dois a três vezes por semana”. No entanto, ela acredita que estes dados devem ser levados em conta, já que é a população jovem e de maior vulnerabilidade socioeconômica que tende a ter um acesso mais frequente a este tipo de alimentos, devido ao baixo custo.
“Sempre encontramos doenças hepáticas em grupos populacionais mais jovens” acrescenta Aller, que também é vice-secretária da Associação Espanhola de Estudos do Fígado (AEEH).
Para Giuseppe Russolillo, presidente da Academia Espanhola de Nutrição e Dietética, dada a situação atual, é esperado que casos de fígado gorduroso não alcoólico se repitam nos próximos anos.
“A população está cada vez mais sedentária, estamos comendo mais alimentos processados e ultraprocessados, o preço dos alimentos in natura e sazonais está ficando mais caro… Se nada mudar, estaremos caminhando para um aumento significativo na incidência de patologias como a obesidade, diabetes tipo 2 ou fígado gorduroso” afirma o nutricionista.
Russolillo pontua que, sim, o ato de consumir este tipo de alimento está associado ao aparecimento de sobrepeso e obesidade e, portanto, de esteatose hepática; mas que nem todas as pessoas com sobrepeso, obesidade ou fígado gorduroso têm esses problemas por comer fast food, já que, no final, se tratam de doenças multifatoriais.
Uma doença sem tratamento
O problema, como destaca Aller, é que atualmente não há tratamento farmacológico para tratar essa condição. “O único tratamento é dieta e exercício físico. E a dieta recomendada pelas evidências científicas é a dieta mediterrânea, que é exatamente o oposto do fast food” explica a professora da Universidade de Valladolid, lamentando o processo de ocidentalização sofrido pela dieta da Espanha.
“Parece inacreditável que, estando na bacia do Mediterrâneo, estejamos cada vez mais comendo como os países ocidentais. Para eles é mais difícil, porque o azeite não está tão facilmente disponível e as frutas e legumes são mais caros. Mas deveríamos fazer uma educação sanitária para que as pessoas saibam que o fast food não é saudável e que se deve consumir produtos locais baseados fundamentalmente na dieta mediterrânica” acrescenta Aller, que considera necessário e essencial baixar os impostos sobre os alimentos saudáveis e aumentá-los no caso de fast foods, para que não sejam tão acessíveis.
Para Russolillo, porém, trata-se de problema que não pode ser resolvido apenas com multas, aumento de impostos ou regulamentação da publicidade. “A Espanha é o único país da União Europeia que não possui nutricionistas no sistema público de saúde. Médicos, enfermeiros e farmacêuticos são colaboradores nesta área, podem aconselhar, mas não têm as competências de um nutricionista nem o conhecimento holístico que tem um profissional de nutrição” alerta.
Além disso, lamenta que as políticas públicas de saúde nessa área não sejam elaboradas por nutricionistas especializados e que eles não participem da elaboração de documentos públicos sobre o assunto. “Taxar determinados alimentos é fácil, mas é preciso ir além, com campanhas de educação nutricional nas escolas, para as crianças e suas famílias, que devem ser conduzidas por nutricionistas qualificados” aconselha o presidente da Academia Espanhola de Nutrição e Dietética.
Deve-se também lembrar que a alimentação não é um ato meramente biológico, mas carregada de um valor simbólico associado a uma cultura. “Isso é uma coisa que a administração pública não entende. Você acha que os adolescentes vão parar de comer hambúrgueres ou pizzas porque dizemos que é ruim? Se você não levar em conta o contexto cultural, as políticas estão fadadas ao fracasso. Estamos matando moscas com tiros de canhão”, conclui.