POLÍTICA & NEGÓCIOS
Em vias de criação e em negociação com filhos do presidente, Nova UDN se baseia no legado da legenda antigetulista e ‘liberal’ na economia, conservadora nos costumes
Liberais na economia, conservadores nos costumes, fãs dos militares e dos americanos, e odeiam o comunismo. Poderíamos estar falando do bolsonarismo, mas a descrição também serve à União Democrática Nacional, um dos principais partidos políticos no turbulento período entre as ditaduras de Getúlio Vargas (1937-1945) e militar (1964-1985).
Mais de cinquenta anos após sua extinção, a sigla pode voltar ao protagonismo na política brasileira com as especulações de que pode receber, entre outros, membros do clã Bolsonaro.
Para uma das principais especialistas na história do partido, entretanto, o bolsonarismo não é o herdeiro direto da UDN, mas apenas um de seus vários filhos.
“Se a UDN pode ser considerada a inspiração para aspectos do bolsonarismo? Sem a menor dúvida”, afirma a professora aposentada da Universidade de São Paulo, Maria Victoria Benevides, que completa:
“Para mim, o bolsonarismo é o herdeiro do udenismo mais radical. É um herdeiro daqueles que vieram a aderir ao golpe em 1964, de Carlos Lacerda (ex-governador do Rio de Janeiro), diferentemente do grupo do Afonso Arinos (ex-deputado, senador e chanceler)”.
Além disso, ao contrário do que afirmam seus novos criadores, a UDN não foi, necessariamente, o partido da direita. Pelo contrário: segundo a pesquisadora, a legenda nunca se assumiu publicamente dessa forma.
A sigla surge, inicialmente, como uma aglutinação das forças que lutaram pela queda da ditadura de Getúlio Vargas em 1945. Incluía liberais, mas também socialistas (as esquerdas democráticas, como eram chamadas à época).
Durante os 20 anos que se seguiram, a UDN disputou as eleições com o progressista PTB, alinhado ao getulismo, e o PSD, mais ligado às oligarquias rurais. Para seus críticos, era o partido dos cartolas, do golpe, das vivandeiras de quartéis. Para os udenistas, era o partido do antigetulismo, dos moralistas, da classe média e dos liberais. Segundo Maria Benevides, o partido foi tudo isso.
“Eu acho que a UDN foi extremamente ambígua porque ela apoiou certas pautas progressistas mas o seu antigetulismo era tão radical, tão radical, que a impedia de avançar mais. Ela era liberal na economia mas politicamente ela não era liberal. Ela tinha um nível intelectual num sentido mais amplo que eu não vejo no PSL.
Seria impossível um chanceler como Afonso Arinos de Melo Franco se comparar com o chanceler do Bolsonaro, por exempo. A UDN foi conservadora, com traços militaristas e direitistas mas ela não se afirmava dessa forma. Ela não se afirmava de direita. Se dizia o partido da eterna vigilância e moralista, sempre vendo a corrupção dos outros”,
No livro “A UDN e o udenismo: ambiguidades do liberalismo brasileiro”, Maria Victoria Benevides conta a história de um partido que de foco da luta contra a ditadura varguista, teve o fim trágico da extinção apoiando o surgimento de outro regime autoritário: “o partido que nasceu da luta contra uma ditadura, cresceu apesar de sofridas derrotas — sempre em nome dos ideais liberais de sua inspiração primeira — para finalmente, quase vinte anos depois, surgir vitorioso num esquema de poder que instalaria um regime militar de arbítrio, repressivo e autoritário”, escreveu.
Para ela, o presidente Jair Bolsonaro, à época da fundação do partido, teria poucas chances de triunfar. Nas Forças Armadas, a UDN sempre foi mais alinhada a uma ala menos nacionalista, lançando por duas vezes nomes consagrados dentro da corporação, como Juarez Távora e o brigadeiro Eduardo Gomes.
“Eram homens com uma história de valentia, de coragem. Inicialmente, economicamente, a UDN era muito mais Paulo Guedes do que Jair Bolsonaro”, diz a socióloga.
O partido era, por exemplo, favorável à remessa de lucros de empresas para o exterior, um dos temas mais controversos no debate político da época. Socialistas e petebistas queriam que as empresas fossem obrigadas a manter seus ganhos no país.
Os udenistas, alinhados aos Estados Unidos, tinham uma visão diferente. Uma de suas principais lideranças, o deputado Aliomar Baleeiro chegou a dizer que não era a favor de uma política de portas abertas às empresas estrangeiras, mas de portas escancaradas.
Radicalização antigetulista
As sucessivas derrotas, primeiro para Vargas, em 1950, e depois Juscelino, em 1956, levaram a uma gradual radicalização do partido que, em 1964, estava entre os primeiros apoiadores do golpe militar. Para Maria Benevides, esses traços ideológicos são as principais semelhanças entre o atual bolsonarismo e a antiga UDN.
O baluarte dessa ala era o jornalista Carlos Lacerda, alçado à notoriedade pelas críticas ferozes que fazia à corrupção na era Vargas. Sobre o retorno de Getúlio ao poder, em 1950, chegou a dizer: “O senhor Getúlio Vargas não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar.”
“O antipetismo repete o antigetulismo na sua força. No fundo, é a ambiguidade entre liberalismo e conservadorismo que é uma constante na história da elite brasileira. ”, diz Nesse momento, surge a proximidade cada vez maior com as alas militares favoráveis à deposição de João Goulart, por exemplo. “Há uma frase de um udenista famoso, José Bonifácio, de Minas Gerais: “Nunca tiramos os pés do quartel.
Atravessamos toda a luta com os pés no quartel, almoçando e jantando com generais, almirantes e brigadeiros. Esses oposicionistas bobocas de hoje, a primeira coisa que fazem é xingar os militares. Não conhecem a realidade brasileira””, diz a professora.
Na questão dos costumes, assim como o bolsonarismo, o partido defendia uma moral alinhada com a cristã, particularmente a católica. Contudo, segundo a professora, esse tipo de questão não era uma discussão política na época.
A situação de LGBTs não estavam na pauta do dia. Pelo contrário: até mesmo Juscelino Kubitschek, o “presidente bossa-nova”, tinha restrições em relação ao divórcio. Segundo a professora, o JK não aceitava ministros desquitados no seu gabinete.
“Esse conservadorismo nos costumes era também uma coisa religiosa. Os católicos da UDN não tinham nenhuma condescendência com os espíritas, com as religiões afro e menos ainda com os evangélicos. Ser evangélico, na época, para os católicas era uma heresia tremenda”, conta Maria Benevides.
Para a professora, entretanto, é impossível atribuir ao partido a defesa “da moral e dos bons costumes”, necessariamente. “Todos eram conservadores nos costumes. Essa discussão que temos sobre costumes veio depois, a partir de 1968”, conta.